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A dor do outro existe?

Foto do escritor: Gerson Steves Gerson Steves

Há uma cena em A Real Pain (A Verdadeira Dor, 2024) em que um grupo de pessoas janta num pequeno restaurante familiar no interior da Polônia. A fotografia circular e os rostos que revelam o que não pode ser revelado por palavras, ao som de um piano que toca a emblemática Hava Nagila, me fizeram imediatamente lembrar de um clássico de Woody Allen em sua melhor fase: Hannah And Her Sisters (Hannah e Suas Irmãs, 1986). Foi assim que, já na segunda metade do filme, tive o insight: Jesse Eisenberg, roteirista e produtor/diretor do filme pode se tornar um jovem Allen dos novos tempos em que parte de Hollywood busca se alinhar com os chamados “valores WOKE” justamente no momento em que uma outra parte, mais retrógrada e caquética, busca criar produções anti-woke (informe-se!).

 

De qualquer modo, para mim, parece inegável que Eisenberg tenha visto muito Woddy Allen – confessa ou inconfessadamente. Mas deixemos Allen e a velha indústria de lado e falemos de um horizonte possível na construção de conteúdos para o cinema no mundo. Sim: não apenas Ainda Estou Aqui (OSCAR de Melhor Filme Internacional, 2025) se destaca pelo uso preciso de recursos, como cenários e figurinos e ainda com pequenos elencos, baixos custos e temáticas do “lado certo” das fronteiras globais. Preciso citar ainda outra joia da qual falarei em próximo comentário: Sing Sing. Juntamente com A Verdadeira Dor, todos os três falam dos esquecidos que precisam ser lembrados, dos apagados que devem ser vistos.

 

Não sou do tipo de comentarista (odeio a palavra crítico) que fica dando sinopses ou os tão malfadados spoilers(outra palavra que odeio por muitas razões). Entretanto é preciso que você saiba: o filme dispara muitos gatilhos (terceira expressão que odeio!) Sim, o filme trata do Holocausto – especialmente de judeus poloneses – e não de forma autocomiserada. Trata ainda de suicídio, uso de substâncias tóxicas, hipocrisia social e até temas leves como: marxismo, nazismo, comunismo, divórcio, envelhecimento, abandono, conversão religiosa. E se você acha que todas essas são as dores a serem possivelmente entendidas como a tal “verdadeira dor”, ainda não viu nada!

 

O filme é um recorte da vida de dois primos que foram criados como irmãos (quem não tem um?) e que agora, já na fase adulta de suas vidas, se reencontram para uma viagem rumo às raízes judias polonesas. Isso, partindo da cosmopolita Varsóvia rumo ao interior do país até Lubin e, depois, Majdanek – local de um dos campos de concentração preservados (olha a ironia). Além das imagens de cartão postal e da verborragia típica de WoddyAllen, o filme nos convida ao silêncio e à reflexão. Até que ponto é aceitável tirar selfies em monumentos erguidos a soldados desconhecidos? Ninguém percebe a ironia de uma hospedagem luxuosa na vizinhança de um campo de concentração? Ou de um vagão de primeiríssima classe num trem percorrendo os mesmos trilhos do Holocausto? Os sapatos empilhados e a pilha de cinzas humanas respondem essas perguntas e muitas outras.

 

Para além das questões históricas e sociais, o filme de Eisenberg traz os conflitos pessoais das personagens – menos interiorizadas (como vemos em Ainda Estou Aquiou Sing Sing), mas ainda assim em composições com muita verossimilhança e empatia. Não à-toa Kieran Culkin (sim, irmão de Macaulay) levou alguns prêmios, incluindo o BAFTA de melhor ator coadjuvante, por sua atuação leve, vigorosa e ao mesmo tempo atormentada de um homem ainda preso à juventude e assustado diante do futuro. Eisenberg e seu roteiro – bem como sua atuação – também têm frequentado os tapetes vermelhos das premiações nesta temporada, desde o Sundance e o Independent Spirit aos poderosos da crítica como o CritcsChoice, até os badalados BAFTA e acabou abocanhando o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante 2025.

 

Também como em Ainda Estou Aqui, o filme de Eisenbergtem um personagem especial que ninguém vê. Mas ouve! É a trilha sonora. Do mesmo modo que no filme brasileiro, A Verdadeira Dor tem em sua trilha a presença constante de Frederic Chopin e seu piano, ora alegre, ora melancólico. O compositor romântico do séc. 19 sempre foi fiel às suas raízes polonesas, de tal modo que, em um segmento já no fim do filme, vemos o crédito dado pela placa de trânsito indicando o Aeroporto Chopin.

 

Por outro lado, como os outros filmes que mencionei no início, glamour não é o foco desta produção (ao contrário dos espetaculosos Emilia Perez ou A Substância). Aqui, figurinos e cenários ao estilo Dogma 95, que dá a impressão de que a obra está sendo feita com o que se encontra disponível, dão ao filme de 120 minutos, a necessária verossimilhança para embarcarmos na vida e na experiência de seus personagens. Além disso, não há truques, efeitos especiais, inteligências artificiais, maquiagens especiais ou dublês em cenas de ação arriscadas. O que há é a vida diante de nossos olhos, normalmente dolorosa. E esta é a verdadeira dor: a nossa, da qual mal damos conta. E sempre que nos confrontamos com a dor do outro, sempre voltamos pra casa e abraçamos aqueles que amamos, como se a dor do outro não existisse.

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