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Foto do escritorGerson Steves

Cantando na Chuva, um musical popular a preços nem tanto.

Sou do tempo em que a Rede Globo programava Cantando na Chuva (o filme de 1952) em toda madrugada de ano novo. Acho que o assisti bem mais de uma dúzia de vezes, a ponto de antecipar as falas e conhecer a sequência de cenas de cór; sou capaz de descrever alguns figurinos e cenários de olhos fechados. E não é que esta pessoa aqui resolveu se abalar para o teatro para ver a atual montagem teatral em cartaz?! Pois é: senta que lá vem textão.


Cantando na Chuva, um musical popular a preços nem tanto.
Imagem: João Caldas Jr.

 

O filme e as canções que impactaram gerações hámais de 70 anos chegaram aos palcos em 1983 – portanto, pouco mais de 30 anos depois do filme. No Brasil, só em 2017 que Claudia Raia e Jarbas Homem de Mello protagonizaram a obra (confesso que não vi). Mas o que eu quero ressaltar é o fato de que a obra envelheceu como todo o mundo – mesmo o musical teatral já conta mais de 30 anos e, consequentemente, comete seus deslizes no que diz respeito a conceitos como liberação da mulher, homossexualidade, machismo estrutural, insubordinação civil.

 

Assim, como a maioria dessas obras que todo mundo tem desenterrado ultimamente (Kiss me Kate ou Funny Girl), esta também precisava de revisão. Parece não ter havido. E, nesses aspectos, a direção gringa não ajuda a tradução e vice-versa. As canções vão bem, mas os diálogos e as situações repetem modelos que – nos nossos dias – não podem mais ser reproduzidos.

 

E aqui vai uma dica: não, Cantando na Chuva não pode ser reduzido a “o musical que tem chuva no palco”. E não: a versão não pode mais dar de ombros para o fato de que “pode a cidade alagar”– ou seria “inundar”? Impossível ouvir isso e não pensar em Porto Alegre e em nossa responsabilidade sobre o uso da água.

 

A direção não pode permitir que um homem sapateie água suja de chuva nas pessoas que passam sem que a polícia chegue antes e o pegue em flagrante. Como também não se faz bullying e chacota de personagem visivelmente gay, ao ponto de fazê-lo terminar o número de bunda virada para o público que ri às bandeiras despregadas, cooptado pela ideia de que é permitido fazer piada desde que seja às costas de alguém – ainda mais em um espetáculo em que produtores, equipe criativa e elenco são em sua maioria da comunidade LGBTTQIA+. Não dá mais.

 

Mas apesar de tudo isso, foi a plateia mais diversa que vi nos últimos tempos em termos de idades, gêneros e perfis. Esse é o papel do teatro: conversar com o maior e mais variado número de pessoas. Mas é preciso que se ressalte o fato de que o Teatro Sergio Cardoso é um espaço público e subvencionado pelos impostos dos cidadãos do Estado e, em assim sendo, não poderia praticar os valores de ingresso que estão sendo praticados. Ainda mais por tratar-se da proponência de um Instituto Cultural (Atrium), cujas regras de impostos e taxas são diferentes das aplicadas a uma produtora teatral convencional. Esse instituto, então, contrata os serviços de uma produtora (Atelier de Cultura) que nada mais é do que outro tentáculo do mesmo polvo. Concluo que, de fato, as leis de incentivo possuem discrepâncias que precisam ser revistas o mais rápido possível.

 

Vamos ao espetáculo? O trio de gringos (luz, cenário e direção cujos nomes não vou citar) definitivamente não faz bem o seu trabalho.

 

A direção não tem ritmo, as passagens de cena não possuem velocidade, a abertura é lenta e arrastada, mal desenhada, a decupagem das cenas de narrativa em paralelo com os números musicais resulta escolar – especialmente nos números de fantasia. Exemplos não faltam, mas vou dar dois: o número da “história da vida de Lockwood” não comunica especialmente pela falta de recortes de luz (mas isso é outro assunto); o clássico número de fantasia “Gotta dance” virou show de Las Vegas – quando o original propõe uma vertiginosa sequência com inspiração em Broadway. A direção e a produção também não cuidaram do recurso audiovisual em que se apresenta o filme dentro da peça. É pura ignorância e falta de cultura tratar o produto (na narrativa recém-filmado) como se fosse filme velho e bichado. Ignorância.

 

A iluminação é preguiçosa e pobre. Com o dinheiro captado, era possível iluminar melhor e mais frontalmente o espetáculo. Afinal, se trata de uma comédia musical e, por isso, pede luz! Conheço o palco do Sergio Cardoso ‘de trás pra frente’ – como ator estive sobre ele por três vezes – e sei que é difícil preencher a caixa toda, ainda mais quando uma faixa enorme de proscênio é absoluta e absurdamente ignorada, mantendo a narrativa do meio para o fundo e utilizando só as varas de palco e laterais que, desgraçadamente, fazem sombras nos rostos dos performers. Isso sem mencionar os LEDs dos pórticos cenográficos que delimitam as coxias – essas luzes tão na moda adoram ficar piscando e só acender quando querem.

 

A cenografia é monolítica e antiquada. Rezamos para que o palco fique nu e nos livremos das escadarias brancas desnecessárias, das pernas gigantescas com cortininhas cafonas ou da medonha casinha de campo igual ilustração da cartilha Caminho Suave. Para a produção: que tal vestir os contrarregras e diretores de cena com figurinos neutros? Já que eles vão entrar com suas próprias roupas, que eles entrem em cena sem headsets!

 

Para a equipe criativa, quero tecer dois elogios. O primeiro ao trabalho sempre consistente de Floriano Nogueira. As coreografias entusiasmam (apesar de estarem sujas em alguns conjuntos) e a direção de movimentos é muito bem realizada – os coros são vivos e possuem personalidade, bem como os personagens secundários. O segundo elogio vai ao trio de figurinistas (Ligia Rocha, Marco Pacheco e Jemima Tuany) pelos lindos figurinos em que se nota pesquisa de época, compreensão do gênero e dos vários estilos da obra, entendimento de palheta de cores – pena estarem tão mal iluminados. Na minha modesta opinião, o ponto alto dos figurinos é o uso das franjas em vários materiais e que – sempre – nos remetem ao conceito da chuva!

 

Sobre o elenco há que se dizer: é jovem demais para a obra. Resulta frágil. Além disso, alguns personagens ficaram engessados em uma interpretação monótona brincando de “caçadores da piada perdida”. Para alguns, a partitura corporal e gestual ajuda, para outros engessa. Galera: que tal ler Henri Bergson?

 

Prefiro falar das personagens. Don Lockwood e Kathy Selden vendem o típico casal hétero e careta – nada mais desinteressante, mas a plateia classe média vibra ao primeiro beijo. Por outro lado, talvez fosse tempo de tentarmos decifrar qual o verdadeiro papel de Cosmo Brown e Lina Lamont – os dois mais interessantes da obra. Ele, um pária, mistura de Groucho Marx com Buster Keaton, é sempre a terceira roda, a vela, aquele que é esquecido assim que os conflitos básicos do casal romântico se resolvem. Lina, por sua vez, é humilhada em público pelo mundo masculino e desaparece quando não serve pra mais nada. Ambos mereceriam mais carinho no olhar de seus performers e principalmente da direção. Mas isso é que dá fazer peça com o pó dos sacos de areia da cenografia e a naftalina dos baús.

 

Faltou falar da chuva? Em resumo: pra quê?

1 commento


Boa análise, Gerson. Não assisti o Cantando, mas desconfiava de algumas questões que você tão bem comentou. E realmente, o Sérgio Cardoso deveria praticar preços de ingressos em patamares mais baixos do que os teatros comerciais. É mais uma demonstração de que pagamos impostos sem ter contrapartidas.

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