Esta semana sentei-me num teatro para ver uma obra revisitada e que por essa razão ganhou o pomposo e desnecessário subtítulo de Reloaded. Trata-se de O Estrangeiro, de Camus, com Guilherme Leme Garcia.
Por alguns minutos entre o saguão do teatro e o terceiro sinal, fiquei dando tratos à bola tentando imaginar o que o autor sentiria com esse americanismo fútil. Mas logo parei. Parei diante da essencialidade quase espartana da encenação capitaneada por Vera Holtz, que além de ser uma das nossas grandes atrizes é também artistas plástica. Parei e pensei: Camus gostaria desse palco imaculadamente negro, sem firulas, direto ao ponto, numa caixa hermeticamente fechada abrigando um homem só. E logo lembrei do ‘gato de Schrödinger’ e me perguntei se esse “estranho estrangeiro” estaria vivo lá dentro apenas pelo meu desejo, embora morto de fato.
Uma obra inspiradora é assim. Pelo menos deveria ser. Capaz de nos transportar a outros mundos, sem perder o fio da narrativa precisa típica do autor – muito bem adaptado para o palco por Morten Kirkskov a partir da tradução de Liane Lazoski. Há na obra algo que nos leva a outras obras e não apenas de Camus. Uma delas é Woyzek de Büchner – a indefectível presença de Marie é uma das principais chaves, mas não a única; o sol como símbolo de pulsão de vida e sexualidade também é presente em ambas as obras. Outra obra é o mito-história de Kaspar Hauser, tão bem traduzido cinematograficamente por Werner Herzog em seu Enigma (1974).
O espetáculo, atualmente em cartaz no Teatro Vivo (SP), é inspirador por tudo que já expus e muito mais. Ver um ator em cena, na solidão do exercício de seu ofício nos inspira (outros artistas) ao salto no escuro, ao risco, à coragem de experimentar o novo e re-experimentar o já feito (talvez por isso o tal reloaded).
A desgastada ideia de que “teatro precisa de pouco” nos visita e se mostra tentadora, quase verdadeira. Quase. Pois que, na verdade, teatro precisa de muito: ainda que seja apenas um ator em cena, ele vem bem preparado no corpo e na voz para dizer esse texto ininterruptamente com gestos precisos e inflexões inteligentes (e poucos maneirismos, sempre em linha reta); uma luz não apenas bonita e bem desenhada por Aline Santini, mas brilhantemente operada e em perfeita sintonia com cada pequeno movimento do performer; um figurino que é quase um ‘não-figurino’ proposto por João Pimenta e que atende à narrativa e não o contrário como comumente se tem visto. Portanto, mesmo que precise de poucas coisas, teatro precisa muito de gente. E de muita gente.
Quem lê meus textos sabe que não sou do tipo de comentarista que fica reproduzindo press-releases ou textos de programa. Não dou sinopses nem faço spoilers. Mas é importante ainda dizer que O Estrangeiro nos confronta com a ideia de viver quase como páginas em branco (e por isso Woyzek e Kaspar Hauser), ao sabor dos impulsos e não escravos de determinismos religiosos; nos lembra que, de um jeito ou de outro, acabamos por nos acostumar com tudo. Para o bem e para o mal.
Adorei a menção ao “gato de Schrödinger” e a imagem que me trouxe ao lembrar do espetáculo. Excelente crítica!