Antes de tudo e de uma vez por todas, é preciso que fique claro: quando um produtor compra os direitos de um espetáculo da Broadway, está sujeito a regras muito estritas de produção e criação. E essas regras passam por aspectos como: tamanho do teatro e da temporada, elenco, versionistas e tradutores, aspectos artísticos, criativos e até de acting.
Isso dito, é preciso esclarecer que Kleber Montanheiro, em sua montagem atual de Cabaret no Kit Kat Club, não cortou canções nem inseriu nada. Os direitos autorais desta montagem dizem respeito a um libreto muito específico, com algumas canções e cenas que não estão sendo apresentadas no mundo inteiro; bem como a exclusão de outras que, embora sejam adoradas pelos fãs (como Mein Herr e May Be This Time), não podem ser apresentadas aqui no Brasil, por estarem em Londres e Nova Iorque. Estamos entendidos?
E agora vamos a um papo bem franco sobre esta montagem específica de uma obra que eu amo há pelo menos 50 anos (e que sei também ser uma paixão de Montanheiro). E, pra quem nunca leu os meus escritos, sempre sigo um be-a-bá que me ajuda a organizar o pensamento e, ao mesmo tempo, dar alguns pontos de atenção ao leitor. Não que isso faça diferença pra alguém.
Muito há que se dizer, e não vou conseguir falar de tudo. Começo pelo título – não da obra, mas desta resenha – uma frase de Sally Bowles, considerada o pináculo da alienação apenas comparada a Roxie Hart ou Charity em Chicago e Sweet Charity, respectivamente. E se há algum motivo para que essa obra chegue ao luxuoso rooftop de uma instituição financeira em nossos dias, o motivo é esse: esfregar na cara da burguesia o quanto a direita é perigosa, perniciosa e assassina. Mas Sally parece não entender, preocupada com seus sonhos e percalços imediatos e sem jamais enxergar um palmo além de seu copo de gim.
Inteligentemente, a obra nos mostra um mundo real em desilusão e desmoronamento enquanto números musicais de um inferninho decadente se fundem para ilustrar a narrativa. Ainda estamos em 1931 e o Partido Nazista apenas começava a sua escalada no projeto que conduziria o mundo a uma tragédia sem igual em sua história. Um tempo em que Berlim era comparável à Paris dos anos 1920: efervescente, cultural, artística, libertária e desigual. Uma tarefa árdua pintar esse quadro; e Montanheiro atinge plenamente o objetivo numa encenação imersiva. Nada que ele não tenha feito antes; basta lembrar de encenações como Caos, Kabarett, A Ópera do Malandro e Tatuagem. E, habituado a formatos não convencionais de plateia, o diretor faz sua encenação numa enorme passarela cuja cenografia remete ao engate de vagões de trem, topos giratórios ao estilo do Lido de Paris, palcos dentro de palcos, elevações e nichos – proporcionando alimento para os olhos todo o tempo.
O mesmo se dá com o figurino também criado por Montanheiro, versátil e multifuncional, com peças quase realistas e outras absolutamente alegóricas (como o lindo desfile das mulheres-moedas que antecede o número clássico Money). E, falando em número clássico, um dos mais aguardados é If You Could See Her Through My Eyes – o popular ‘Número da Macaca’. Aqui, sofri uma verdadeira inversão de expectativa: ao mesmo tempo que aguardava o número para ver a solução dada às inúmeras questões de racismo, antissemitismo e machismo envolvidas na letra, também esperava o confronto que o humor sombrio típico dos cabarés alemães faz com o público. Nem uma coisa, nem outra. A escolha da direção e da produção foi evitar conflitos. Ficou morna. Posso compreender.
Que mais dizer? A iluminação de Gabriele Souza parece entender totalmente o figurino e a cenografia com momentos memoráveis. As sonoridades estão preservadas tanto na pequena Orquestra de Senhoritas (termo cunhado nos anos 1930) quanto na harmonia de vozes. A coreografia de Barbara Guerra é vigorosa sem ser invasiva ou estar acima dos desempenhos individuais de um ensemble bastante competente. E nisso, como sempre, vai meu maior aplauso: o elenco, o conjunto! Não apenas protagonistas separados de coros, mas o todo, como gostaria Bertolt Brecht (e parece termos esquecido em tempos de protagonismos ocos de Broadway).
Eles são unos na entrega da história. Conectados em cena pelo olhar, os pequenos gestos, as expressões, a respiração, a expansão e a contenção. Trabalho sutil, inteligente e delicado conduzido por Erica Montanheiro (responsável pela preparação do elenco). Todos estão bem. Gostaria de ver algumas escolhas mais verticais e brechtianas no que diz respeito às tomadas de consciência em cena, mas são escolhas e precisamos evitar que o público saia no meio... então a saída é armar uma arapuca de encantamento e esperar que voltem para o segundo ato. André Torquato, como Emcee, é jovem demais para o papel, mas cumpre bem os desafios impostos. Finalmente: é muito bom ver Fabi Bang com um imenso charuto emulando figuras como Brecht, Maria Alice Vergueiro, Cida Moreira ou Groucho Marx. Só isso vale o ingresso. Glinda está morta e enterrada!
👏👏👏
Bem, agora é conferir. Estou bastante curiosa com a montagem. Espero que Gerson esteja certo e errado ao mesmo tempo, pois quando temos Brecht como opção de construção narrativa, nada pode ficar ileso ou morno.
Excelente texto.