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Delacroix, Van Gogh e Da Vinci: a importância da leitura simbólica.

Foto do escritor: Gerson Steves Gerson Steves

Nos últimos dias fomos invadidos pela opinião de gente de todo tipo e coloração política (analistas, jornalistas, humoristas, criadores, influenciadores e desocupados) que se arvoraram a fazer leituras simbólicas das mais diversas, sobre acontecimentos igualmente diversos. Parece que o tiro de largada dessa onda foi dado em direção à orelha de Donald Trump e disparou para o mundo a foto que igualou o Pato Donald à imagem criada por Delacroix (A Liberdade Guiando o Povo – que já foi capa de disco de Pop/Rock). Teria Donald pensado nisso ao brecar seus seguranças e posar como que erguendo o panteão tricolor (bleu-blanc-rouge) estadunidense? Teria o experiente fotógrafo (Evan Vucci) sentido a oportunidade da imagem no calor do momento? Ou teríamos nós, tão afundados em referências imagéticas, feito a associação imediata com a capa do Coldplay? E reside aí, no imediatismo, o perigo.

 

Corte rápido: três dias depois, o Pato Donald aparece com um curativo na orelha, como um Van Gogh da ultradireita. E os memes são imediatos. Todo mundo conhece o autorretrato do pintor holandês e mais uma vez, todo mundo fez a conexão imediata.

 

Imediatismo idêntico se verifica no momento em que Kamala Harris se torna a candidata dos Democratas à presidência dos Estados Unidos. Os caçadores de conexões imagéticas e simbólicas (agora no papel da paleontologia cibernética) desenterram a foto de Lisa Simpson (2000) vestida como Kamala na posse de Biden (2021). Tá bom pra você? Claro que não! Ainda vamos tratar da abertura dos Jogos Olímpicos de Paris na semana passada. E, sobre isso, preciso recorrer à máxima: “Gosto é gosto. Cultura é outra coisa.”

 

É inegável que o mundo do esporte, invariavelmente, não se entende como manifestação cultural, como parte da cultura. E por Mundo do Esporte, entendamos todos os envolvidos: esportistas, treinadores, jornalistas, comentaristas, ministros, secretários, líderes de agremiações e instituições, fans! Há, sim, exceções. Sempre há.

 

Mas essas pessoas, fans do esporte habituadas com regras, campos separados, times e torcidas, quadras especializadas, placares, recordes, relógios e matemáticas – essas pessoas não possuem treinamento para leitura do simbólico. Para leituras de um modo geral (literária e iconográfica). São do corpo-a-corpo e não dão muita bola pra aspectos como sensibilidade e emoção.  Só se emocionam mesmo quando cruzam linhas de chegada ou perdem de goleada. Normalmente, não vão a museus, bibliotecas, galerias, cinemas ou teatros – não olham para o sol e para a lua, preferem a grama e a lama de arenas ou gladiadores.

 

Mas existe um momento, a cada quatro anos, que elas são forçadas a entender que o mundo é mais que uma bola (ou várias bolas). Sim, ainda que redondo, elas precisam lembrar que o mundo não gira em torno dos interesses só do esporte. E esse momento se repetiu na sexta-feira (26/07) na abertura dos Jogos Olímpicos de Paris.


Delacroix, Van Gogh e Da Vinci: a importância da leitura simbólica.
Imagem: Olimpíadas de Paris/Divulgação

 

Foi um festival de diversidade cultural e humana. Por meio de uma narrativa até certo ponto simples e pueril, o mundo foi lembrado de que existem modalidades culturais para além dos esportes: teatro, cinema, dança, artes plásticas, música, literatura, arquitetura, tudo a céu aberto – faça chuva ou faça sol. O mundo se deparou com mulheres esquecidas e apagadas pela história em um desfile escultórico; teve que engolir a formação de um trisal ao bom estilo Ligações Perigosas; presenciar figuras mitológicas anteriores à sociedade cristã e conservadora que pretende fincar suas patas imundas na contemporaneidade. Teve Edith Piaf, Marcel Marceau, Josephine Baker, Zizi Jean-Marie, Victoria de Samotrácia, Sequana (a guardiã prateada do Rio Sena), origens greco-romanas e celtas.

 

Foi a abertura mais diversa de todas. Muito se escreveu e se falou. Todo mundo teve uma opinião pra dar – intelectuais rejeitaram os Minions no Nautilus de Julles Verne, feministas exaltaram as esculturas de Alicia Milliat e Simone Veil, xenófobos execraram a participação de Aya Nakamura, fans de teatro adoraram as referências ao café-concerto ou ao teatro musical (do Lido e Moulin Rouge aos Miseráveis de Victor Hugo). Teve pra todos os gostos. Mas pra ‘entender’ (essa palavrinha que as pessoas adoram sacar na hora de emitir opiniões) era preciso ter referências. Poucos tinham.

 

De tal modo que, lá pelas tantas, num mar (ou diria rio) de diversidade, surge uma passarela em que se remontava um banquete dionisíaco – todo mundo viu, todo mundo que comentou na TV tinha o roteiro na mão. Mas o que todo mundo quis ver foi a Última Ceia de Leonardo da Vinci e, claro, uma blasfêmia. “Onde já se viu aquele monte de gente esquisita representando um quadro sagrado?” O rastilho do preconceito saiu chispando mundo afora e ricocheteando feito a bala que quase cortou a orelha do quase Van Gogh num quase gesto de quase liberdade... Ninguém sabia ler a imagem e levaram quase dois dias para entender se tratar de O Banquete dos Deuses, obra de Jan van Bijlert em que Dionísio está se divertindo durante o casamento de Cupido e Psiqué, com Apolo coroado ao centro da mesa.

 

É sobre isso: apolíneo e dionisíaco. E não sobre mitologia cristã. O resto é história (que ninguém estuda!)

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